Crítica Mostra Nacional 5

Filme Serve pra Isso

Por Gabriel Soares

“Filme serve pra isso. É cinema e pronto. Definitivamente, quando assistimos a esses filmes, somos colocados frente ao verdadeiro propósito do cinema”. Esse foi um trecho do texto de apresentação da curadoria para a sessão que se propunha a exibir obras de comédia. Ousado dizer, com convicção, a serventia de um filme, mas o que, se não o humor, poderia tratar das nuances do verdadeiro propósito do cinema? Se é que há, de fato, propósito. 

A Mostra Nacional 5 do MOV, Festival Internacional de Cinema Universitário de Pernambuco reuniu curtas-metragens que procuravam utilizar de artifícios cômicos para levantar discussões sobre temas diversos. Interessante a dedicação da curadoria em propor ao público uma exibição dedicada a um gênero tão menosprezado no cinema. A dita comédia, principalmente no Brasil, quando não vingada por estereótipos, dificilmente é repercutida nos grandes eixos comerciais. Aos poucos essa realidade tem sido alterada pela criação de cineclubes e festivais abertos à circulação de filmes de gêneros variados, mas, ainda assim, essa categoria audiovisual não engrandece os olhos de grande parte da crítica.

Ao pontuar gêneros, o filme de abertura da sessão foi mais uma obra universitária sobre pessoas tentando fazer seu produto audiovisual. Trabalho Caótico do Cinema – TCC, de Ricardo Santos (Uniaeso), é uma ficção que brinca com clichês do cinema de gênero em uma proposta que não se leva a sério. 

O filme, sem grandes inovações, detalha pontos que fazem o cinema de gênero ser datado e repetitivo em uma obra que se propõe a ser engraçada. De humor por vezes ácido, o curta-metragem, mesmo não carregando grandes revoluções ou contribuições narrativas, é abertura a um olhar amplo do que a sessão poderia oferecer. Reflexão possível é o fato de que, sim, as vezes um filme serve para que a gente possa rir por alguns minutos de piadas ruins, mas igualmente divertidas.

A obra que tomou sequência a sessão levou o teatro para a grande tela do Cinema do Museu. Cadê o Mamulengo que Tava Aqui?, do Antônio Rafael (UFS), é a dominação da arte tradicionalmente nordestina para o audiovisual.

Esse foi um experimento que o resultado final me rendeu boas gargalhadas durante a sessão. Fico impressionado como um boneco, que não demonstra nenhuma variação de feição, pode apenas com gestos, e uma ótima interpretação vocal de quem o conduz, arrancar de mim risadas sinceras com uma história interessante e instigante. O filme em questão revisita a arte dos mamulengos em uma narrativa de suspense que cresce ao longo da obra. Uma estranha sequência de desaparecidos tem atordoado a vizinhança, e, em uma proposta documental ficcional, somos guiados pela possível resolução do mistério. O curta ainda levanta críticas à não valorização de artistas locais em grandes polos culturais, instigando o pensamento coletivo acerca da temática de uma maneira que sua reflexão se dá por osmose.

A verdadeira trilha sonora dessa sessão foram risadas impulsivas na grande maioria dos filmes, e, no Eu Faço Loucuras Por Você, da Gabriela Queiroz (AIC), foi possível notar altos picos de serotonina. Se todas as cartas de amor são ridículas, como diria Fernando Pessoa, o que se pensar de declarações apaixonadas em um carro de som colorido?

Com uma direção fotográfica que lembra a da série The Office, da NBC, por sua estética de câmera na mão, o filme em questão apresenta uma personagem que trabalha com um “Correio do Amor”, um carro chamativo com alto falantes que propagam mensagens apaixonadas para quem contrata seus serviços. Uma obra divertidíssima que brinca com situações “constrangedoras”, ao mesmo tempo que reflete sobre questões que envolvem amores românticos e a espera de algo grandioso em nossas vidas.

Se por um lado a comédia pode nos proporcionar risadas por situações, de fato, cômicas, por outro é possível ser utilizada para escancarar verdades com o excesso. Em Adorável Evolução, de Jordana Beck (UFSC), somos apresentados a um mundo distópico, ou não tão distópico assim, em que a chuva é de sacolas plásticas, as roupas são gigantescas e a poluição é cenário comum da cidade grande. A direção de arte aqui propõe uma visão criativa dos impactos ambientais atuais e suas projeções futuras. Interessante também a construção da trilha sonora que cresce ao longo da obra com os absurdos que são levantados.

Para respiro após tão grande sequência de fatos assustadoramente possíveis, o filme seguinte nos apresenta de início uma fofoca generalizada sobre uma possível disputa entre dois grandes personagens. Cabeça de Boi, de Lucas Souto (UFC), nos joga em meio a uma batalha entre Manel e Tampinha. 

Não imaginava que, de fato, uma disputa de sinuca poderia ser tão estimulante ao ponto de me colocar na ponta da poltrona querendo descobrir qual poderia ser o resultado final. Com uma direção artística que buscou valorizar a cultura de bar interiorana do Ceará, com muitas peças referências do futebol local, Cabeça de Boi nos presenteia com dezoito minutos de uma fotografia que instiga a crescente disputa e um jogo de cena que favorece o crescente suspense em descobrir o passado desses dois personagens. 

Para finalização da sessão, a curadoria apostou na obra de um cinema experimental. MANIFESTA!, de Rodrigo Luiz Martins, apresenta uma proposta de crítica ao mercado cinematográfico e os bastidores que permeiam as produções audiovisuais, desde suas políticas, acessibilidade, debates sobre narrativas afirmativas, entre outras discussões. Um filme que utiliza também o humor enquanto recurso de denúncia.

“Essa sessão, ao terminar, transmite pro seu espectador que ele, definitivamente, viu algum filme”, mais um trecho recortado da mensagem dada no início da sessão pelo texto da curadoria da mostra. Definitivamente vi algum filme, se é ele ou não que me diz o verdadeiro propósito do cinema, deixo os comentários acima como ponto de reflexão a você, caro leitor, me dizer se é ou não. Da minha parte sacio apenas a vontade de que sim, filme também serve pra isso.