Historia Recente Futura
Por Victoria Zenith
O cinema nasce da imagem quando a ressignifica pela primeira vez a partir da sua sequenciação. Tanto o cinema brasileiro quanto mundial em sua primeira forma faz o uso dessa imagem como documentação, na baía de Guanabara ou numa estação de trem em paris, a imagem nasce solitária mas se desenvolve a passos largos. Enquanto Griffith, Eisenstein e Peixoto dão ao plano da imagem uma nova dimensão, timidamente a sincronia entre o som e a imagem se desenvolve. Tanto no que tange mercado quanto linguagem o som muda a relação com o filme, sua contraposição com a imagem dá um novo significado à tela. Se antes Eisenstein dizia que A+B era igual a (A+B) e C agora surge uma matemática completamente não euclidiana no cinema onde todo o alfabeto não poderia simplificar. A história de como a imagem é reinterpretada a partir da sequência de imagens, da escolha e sobreposição de plano, do áudio e do contexto cultural e histórico remonta da criação da fotografia e é ininterrupta e interminável, presente no instante-já do cinema.
Na sessão “História Recente Futura” o filme como interpretador das imagens se torna uma arma cinematográfica e política. Pálido ponto vermelho trata do aparecimento ficcional de um objeto não identificado na Universidade Federal do Pará no ano de 1991 e segue a partir de programas de tv os acontecimentos desse futuro do pretérito. No meio de campo nos narra as eleições brasileiras de 2022 a partir de imagens documentais em profusão com o grande evento audiovisual do ano, a Copa do Mundo. Primavera preta fala sobre a juventude negra em um amálgama de experiências diversas que vão da busca da arte até a vivência na periferia e a vista de um futuro afetuoso. Paçoca apresenta as tensões da política de jardim de infância quando praticadas pela maioridade, duas mães se desentendem por causa da eleição de representante de classe da turma de seus filhos, botando em perspectiva questões de raça dentro da própria elite brasileira. Menina semente apresenta a evolução da cidade de caruaru em volta dessa semente onde de tempos em tempos brota uma menina indígena.
Pálido Ponto Vermelho encontra no contexto sentimental a temporalidade da imagem, escolhe o 3:4 junto ao chiar e todo o aspecto da tv de tubo na criação de um falso documentário. A manipulação da imagem digitalmente transforma o vídeo em narrativa, uma edição não apenas como contraposição e junção de planos, mas como interferência imagética. Um terror nasce a partir desses programas de tv, e seus elementos se tornam caracterização estilística desse terror, o que implica no uso de formas inesperadas desses elementos. Portanto a transformação da tv em objeto de terror e de seus gêneros e formas implica na subversão do próprio terror. Há em jogo a dicotomia entre a mensagem e a forma apenas ao ponto onde a mensagem se torna tão brutal que ignora a formalidade do estilo. Nesse momento o eufemismo cinematográfico é usado não como quem passa a mão na cabeça do público, mas como confrontação. Não é mais possível se esconder atrás da tela de cinema. Nosso pálido ponto azul está para sempre perdido.
Nesse mesmo contexto, a visão da imagem pelo som na criação de um discurso político, a fuga do didático pelo uso da audiovisão é a base que No meio de campo usa para criação da narrativa das eleições de 2022. A partir da narração de uma partida da Copa do Mundo, ele transforma protestos bolsonaristas em torcida e então usa a temporalidade desse som, que em seu sentido original resume pouco mais de 90 minutos, em um ano de disputa eleitoral. Se em um filme diferente a explicação exaustiva da imagem é central chegando a causar até uma certa “vertigem” no uso da narração direta dos fatos como primeiro recurso sonoro, aqui se confia no espectador e no poder direto da imagem, e o som age apenas como unificador de sentido. Então o sentido concreto da imagem é subjetivado pela fala e ganha valor narrativo, unificando assim esses planos e se utilizando desse sentido para quando fugir dessa lógica e mostrar diretamente uma entrevista, o futebol se tornar eleição e termos uma subversão, a fala da derrota do Brasil se torna a fala da vitória eleitoral. E então a dualidade de Neymar, como jogador e em sua figura pública, apresenta posições antagônicas e convergentes na narrativa quando por um lado ele joga pelo Brasil e do outro contra o povo brasileiro na perspectiva abordada. E assim o “chora Neymar”, da derrota da Copa do Mundo, vira zombatório com a derrota eleitoral de Bolsonaro. Às vezes, a imagem encenada não suporta de fato toda a força que o filme espera dela, evidenciando escolhas juvenis e carregando a narrativa para locais que procuram muito o ridículo de um lado sem dar a cara a tapa do ridículo do lado que o filme decide adotar. De todo modo, um lindo exercício de cinema.
Primavera preta vai nesse mesmo sentido no encontro da criação de um cinema que se baseia na narração, mas sua narração se torna poesia e em seu final se transmuta em ficção no contraste com imagens que simbolizam a negritude como criadora e catalisadora da arte. Um filme assumidamente criado a partir da música, com o hip hop como seu centro, e que se relaciona com os ecos como uma cacofonia de vozes que se repetem e se encontram em uma história e sentimentos em comum.
Já Paçoca entende a imagem como forma a ser reinterpretada pelo contexto da narrativa e do momento histórico da criação da própria obra. O filme apresenta um enredo aparentemente pequeno, mas a partir desse microcosmo ele se estende para toda política nacional e carrega simbologia desse contexto maior para dentro do espaço que o filme circunda pois se insere no contexto político e se torna indivisível dele, portanto a imagem que já é indubitavelmente política se torna o ato de fazer política em si. Então vê como ato político a luta pelo direito das coisas mais básicas, ao mesmo tempo que discute em entrelinhas a maternidade e a criança como indivíduo minoritário. Enquadra-se com etarismo a narrativa, dá-se à história infantil para os adultos serem protagonistas. Entretanto esse ato consciente de colocar-se na perspectiva mais esperada é apenas para subverter ao final a lógica dessa perspectiva, mostrando a criança como indivíduo capaz de suas próprias ações e criando ao mesmo tempo essa meta-narrativa sobre a falta da voz da criança dentro da situação. O filme inscreve – a partir de uma decupagem bem formal e cores que criam a dicotomia dos adultos com o mundo colorido infantil – que criança merece ser vista, ouvida e respeitada.
Cada filme em sua forma transmuta imagem em significado, transforma o som como canalizador do significado imagético de narrativas que existem com uma força que retrata a realidade como fruto da ficção. A história do presente real que nos conta esse futuro não tão ficcional é baseada na manipulação da imagem em seus milhares de contextos.