Mostra Nacional 4

Afetos e Outras Coisas

Por Gabriel Soares

O atravessamento é uma das características mais singelas e potentes que o cinema pode proporcionar. O ato de transpassar pessoas através de mensagens e características pontuais por obras audiovisuais é não somente um querer, mas uma conquista otimista de conexão ocasionada pelo filme. E na sessão Afetos e Outras Coisas, exibida pelo MOV, Festival Internacional de Cinema Universitário de Pernambuco, a curadoria em questão reuniu obras que procuram no afeto, estabelecer pontes de discussões poderosas.

Indo na contramão do que se pensa quando relacionado ao afeto, a Mostra Nacional 4 do festival não se dedicou somente em declarações apaixonadas para exibição na grande tela do Cinema do Museu, mas, principalmente, em reunir filmes que utilizam dos recursos audiovisuais para transmitirem mensagens sobre o ato de afetar. Uma dedicação pontual foi a diversidade de obras na sessão em análise, uma vez que sua curadoria reuniu filmes diversos e possibilidades variadas para reflexão da temática.

O filme que abriu a mostra foi Bala Perdida, de Maria Antônia Diniz e Julia Carvalho (UFPE). A animação curtíssima, de apenas dois minutos, foi suficiente para me abrir um sorriso por sua criatividade frente a um tema tão forte. Difícil dissertar sobre uma obra de tão poucos minutos sem conter spoilers, mas sua proposta a pontua como mais um dos filmes que têm entrado para a quebra de expectativa de narrativas já trabalhadas no cinema nacional. 

Assim como Quintal (2015), de André Novais Oliveira, e o clipe Bluesman (2018), de Douglas Bernardt, Bala Perdida procura trazer uma inovação criativa a signos retratados no cinema nacional. A liberdade de uma animação poder fantasiar e utilizar características culturais como pontos de questionamento frente à expectativa de um público, acostumado com narrativas de ódio voltadas à criminalização, é interessante e muito bem trabalhada pela equipe responsável pelo filme.

De maneira a se iniciar a sessão com um astral positivo, o filme seguinte trouxe um teor mais sério e uma discussão densa em sua proposta documental experimental. Pedagogia da Navalha, de Colle Christiane, Alma Flora e Tiana Santos, (Cinema Nosso, Rio de Janeiro), é uma obra que carrega a palavra como principal artifício narrativo e propósito de afeto. 

“Se a palavra é um feitiço, minha língua é uma encruzilhada”, essa frase ecoou dentro de mim após ser verbalizada durante o filme. Um documentário onde cada movimento é intencional; um registro do poder que se carrega na palavra e, principalmente, da ancestralidade presente no ato de colocar uma navalha debaixo da língua.

No tanto que um carregava a palavra como principal artifício narrativo, o filme seguinte utilizou a elipse de falas, normalmente ditas, como teor para contar uma história. Quase como um livro infantil, a animação A Cachoeira dos Pássaros, de Thiago Pombo (UFPE), é um respiro colorido frente à temática discutida. 

A problemática sobre a privatização dos parques é levantada de maneira simples em uma tentativa criativa, utilizando os recursos de animação para compor uma narrativa entre pássaros e desenvolvimento coletivo. Um dos pontos fortes do filme é a criação atmosférica utilizando o som como principal guia, nos levando a compreender os momentos vividos pelo grupo em questão sem ao menos uma palavra (em uma língua compreendida por nós) ser dita.

Mesmo a exibição propondo uma fuga do óbvio ao tratar de afeto, é inegável a relação amorosa como ponto inicial do pensamento, pelo menos de quem vos escreve, acerca da temática, e Amor Puro, da Amanda Vieira (UFRN), cumpre esse papel. Referência à música clássica do Djavan, o filme procura retratar a relação de uma mãe e um filho em seus altos e baixos. Acolher, reconhecer e fazer parte é um resumo da obra que busca representar a vivência familiar de parte dos brasileiros.

A esse ponto da sessão, não imaginava ser pego de surpresa por uma narrativa tão crua, real e potente como a presente no filme que vinha por seguir. Habito, de Fernando Santos (UFRB), foi um dos melhores filmes que vi no festival, e nele há presente o que pra mim representa o MOV em diversos aspectos. Um retrato documental da experiência de um jovem alagoano que vê no cinema uma alternativa de expressar o que é intrínseco dele. 

Tem gente que é, e tem gente que quer ser, e o Fernando sem dúvidas é um artista. Um dos pontos que mais chama atenção na obra em questão é o quão potente o audiovisual pode ser e seu impacto na vida de alguém. Em seu filme de estreia como diretor, o universitário registra o seu início no cinema e quais caminhos o levou a trilhar tal jornada, além das dificuldades e percalços que passou para conquistar o básico sendo um jovem preto e de baixa renda tentando a vida em uma área ainda nichada. 

Com sua narrativa semelhante a do filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, do Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, Habito nos transporta em uma viagem reflexiva sobre a importância da distribuição de filmes nos interiores, a fomentação de políticas públicas que contemplem por completo os estudantes, entre outras questões.  Acredito que a obra representa o festival por sua conversa comum entre universitários e produtores audiovisuais independentes, aqueles que procuram fazer e construir caminhos justos que saciem sua expressão, construindo juntos o que de fato podemos chamar de futuro do cinema.

Para encerrar uma sessão tão significativa, a curadoria nos presenteia com a exibição do brilhantíssimo documentário As Placas são Invisíveis, da Gabrielle Ferreira (ECA-USP). O filme nos apresenta a realidade da luta de cotas em 2015, através de personagens que relatam suas vivências enquanto pessoas pretas em uma das maiores universidades do Brasil, a Universidade de São Paulo. A obra utiliza arquivos dos movimentos de luta nas ruas com uma abordagem intimista e uma linguagem diversa, com entrevistas e registros históricos das manifestações.

Afetos e Outras Coisas foi uma sessão oportuna e eficaz ao tratar de temáticas reflexivas, acerca de construções narrativas que presenteiam o público com histórias diversas. Um momento que você contempla, no cinema, a imersão de como ações afetam e repercutem dentro de outros sendo também afetado por tal admiração.